Salmo do desespero

Certa mulher sofria de uma síndrome rara. Na flor da idade, dores, mal estar, debilitação, passaram a fazer parte do seu cotidiano. Na cabeceira do seu leito de hospital, enfermeiras encontraram um papel amassado. Abriram imaginando tratar-se de alguma receita médica ou talvez alguma correspondência recebida durante o tratamento. Para a surpresa de todos, era um Salmo desesperado:
Hoje quero escrever um Salmo em que derramo todo o meu rancor contra um Deus que nos faz esperar sem necessidade. Deus nos deixa sofrer sem precisão.
Que Deus é esse que se revela conceitualmente, mas não se mostra em um prosaico remédio que cura uma doença banal? Que Deus é esse que se faz carne para revelar seu rosto amoroso, mas não se faz carne para revelar a vacina contra malária. 
Em meu Salmo, digo o que os cantores de Israel nunca tiveram coragem de dizer: fomos criados para a tragédia; nossa breve e estúpida existência não passou de um erro cósmico.
No dia em que o sol explodir e a terra deixar de existir, o universo não sentirá nossa falta. Deus não sentirá falta da humanidade.
Mas nós, desaparecidos e reduzidos a nada, retribuiremos nosso desprezo ao Divino. Nossa não-existência será um tapa na cara de Deus. Nós também não sentiremos sua falta.

As enfermeiras choraram. Mas, nas lágrimas derramadas, jamais se entenderá a angústia de alguém que precisou escrever uma poesia tão dolorida.



Estocado originalmente em http://www.ricardogondim.com.br/poemas/salmo-do-desespero/

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