Lendas dos Judeus #03 (O primeiro dia)


A CRIAÇÃO: O primeiro dia
No primeiro dia da criação Deus produziu dez coisas: os céus e a terra, Tohu e Bohu, a luz e as trevas, o vento e a água, a duração do dia e a duração da noite.
Embora o céu e a terra consistam de elementos inteiramente diferentes, eles foram criados como uma unidade, “como um panela e sua tampa”. Os céus foram formados da luz dos trajes de Deus, e a terra da neve de debaixo do trono divino. Tohu é uma faixa verde que engloba o mundo inteiro, e produz a escuridão, e Bohu consiste nas pedras do abismo, que produzem a água. A luz criada no princípio não é a mesma luz do sol, da lua e das estrelas, que apareceram somente no quarto dia. A luz do primeiro dia era de tal natureza que teria permitido que o homem enxergasse num só relance o mundo inteiro de uma ponta a outra. Antecipando a perversidade das gerações pecaminosas do dilúvio e da Torre de Babel, que eram indignas de desfrutar da bençao dessa luz, Deus a ocultou, mas no mundo que está por vir ela aparecerá aos piedosos em sua glória original.
LEVA-SE QUINHENTOS ANOS PARA SE CAMINHAR DA TERRA AO CÉU, E DE UMA EXTREMIDADE DO CÉU À OUTRA, E É NECESSÁRIO O MESMO TEMPO PARA SE VIAJAR DO OESTE AO LESTE, OU DO SUL AO NORTE.
Diversos céus foram criados, na verdade sete, cada um com um propósito particular. O primeiro, visível para o homem, não tem função exceto a de encobrir a luz durante a noite, e por isso desaparece a cada manhã. Os planetas estão presos ao segundo céu; no terceiro o maná é fabricado para os piedosos no porvir; o quarto contem a Jerusalém celestial juntamente com o Templo, no qual Miguel ministra como sumo sacerdote e oferece as almas dos piedosos como sacrifício. No quinto céu residem as hostes de anjos, e cantam louvor a Deus, embora apenas durante a noite, pois durante o dia a tarefa de dar glória a Deus nas alturas é de Israel, na terra. O sexto céu é um lugar sinistro; ali originam-se a maior parte das provações e visitações ordenadas para a terra e seus habitantes. Empilhados naquele lugar estão neve e granizo; há sótãos cheios de orvalho nocivo, armazéns abarrotados de tempestades e porões que comportam reservas de fumaça. Portas de fogo separam essas câmaras celestiais, que estão sob a supervisão do arcanjo Metraton. Seu conteúdo pernicioso maculou os céus até o tempo de Davi. O piedoso rei orou que Deus expurgasse de sua exaltada morada qualquer coisa que estivesse prenhe de maldade; não era próprio que tais coisas existissem tão próximas ao Misericordioso. Apenas então elas foram transferidas para a terra.
O sétimo céu, por outro lado, nada contém que não seja bom e belo: o direito, a justiça e a misericórdia, os armazéns da vida, da paz e da benção, as almas dos piedosos, as almas e espíritos das gerações não-nascidas, o orvalho com o qual Deus reviverá os mortos no dia da ressurreição e, acima de tudo, o Trono Divino, cercado por serafins, pelos ofanins, pelos santos Hayyot e pelos anjos ministrantes.
Correspondendo aos sete céus, Deus criou sete terras, cada uma separada da seguinte por cinco camadas. Acima da terra mais inferior, Erez, jazem em sucessão o abismo, Tohu, Bohu, o mar e as águas. Chega-se então à sexta terra, Adamah, cena da magnificência de Deus. Do mesmo modo, Adamah é separada da quinta terra, Arka, que contém o Gehenna e Shaa’re Mawet e Sha’are Zalmawet e Beer Shahat e Tit ha-Yawen e o Abadon e o Seol e onde as almas dos perversos são guardadas pelos Anjos da Destruição. Semelhantemente, a Arka segue-se Harabah, “a seca”, lugar de riachos e ribeirões, apesar de seu nome; a terra seguinte, Yabbashah, “o continente”, contém os rios e nascentes.
Tebel, a segunda terra, é a primeira habitada por criaturas vivas, trezentas e sessenta e cinco espécies, todas essencialmente diferentes das da nossa terra. Algumas têm cabeças humanas presas a um corpo de leão, serpente ou boi; outras têm corpos humanos encimados pela cabeça de algum desses animais. Além disso, Tebel é habitada por seres humanos com duas cabeças e quatro mãos e pés – na verdade, têm todos os orgãos duplicados exceto o tronco. Acontece de vez em quando que as partes dessas pessoas duplas disputam umas com as outras, especialmente quando comem e bebem, ocasião em que cada uma exige para si a porção maior. Essa espécie de humanidade é notável por sua grande piedade, outra diferença entre ela e os habitantes da terra.
A nossa própria terra chama-se Heled e, como as outras, está separada de Tebel por um abismo, por Tohu, por Bohu, pelo mar e pelas águas.
HOSTES DE ANJOS CANTAM LOUVOR A DEUS, EMBORA APENAS DURANTE A NOITE, POIS DURANTE O DIA A TAREFA DE DAR GLÓRIA A DEUS NAS ALTURAS É DE ISRAEL, NA TERRA.
Dessa forma uma terra ergue-se acima da outra, da primeira à sétima, e acima da sétima estão dipostos os céus, do primeiro ao sétimo, sendo que o último deles está preso ao braço de Deus. Os sete céus formam uma unidade, os sete tipos de terra formam uma unidade, e os céus e a terra juntos formam também uma unidade.
Quando Deus fez o presente céu e a presente terra, “o novo céu e a nova terra” também foram gerados, bem como as cento e noventa e seis mil palavras que Deus criou para sua própria Glória.
Leva-se quinhentos anos para se caminhar da terra ao céu, e de uma extremidade do céu à outra, e também de um céu ao seguinte, e é necessário o mesmo tempo para se viajar do oeste ao leste, ou do sul ao norte. Apenas um terço deste vasto mundo é habitado, sendo que os outros dois terços são divididos igualmente entre água e terras desertas.
Além das porções habitadas a leste está o Paraíso com suas sete divisões, cada uma designada aos piedosos de determinada categoria. O oceano está situado a oeste, e é salpicado de ilhas que são habitadas por muitos povos diferentes. Além dele, por sua vez, está a estepe sem fim cheia de serpentes e escorpiões e destituída de qualquer espécie de vegetação, quer sejam gramíneas ou árvores. Ao norte estão os suprimentos de fogo-do-inferno, de neve, granizo, fumaça, gelo, escuridão e tempestades, e naquela vizinhança toda sorte de diabos, demônios e espíritos malignos. Sua habitação é uma grande extensão de terra que levaria quinhentos anos para atravessar. Além dela jaz o inferno. Ao sul localiza-se a câmara contendo reservas de fogo, a caverna da fumaça e a forja dos ventos e furacões. Acontece então que o vento que sopra do sul traz calor e mormaço sobre a terra. Não fosse pelo anjo Ben Nez, o Alado, que retém o vento sul com suas plumas, o mundo seria consumido. Além disso, a fúria de suas rajadas é temperada pelo vento norte, que aparece sempre como moderador, qualquer que seja o outro vento que estiver soprando.
A leste, oeste e sul, céu e a terra tocam um ao outro, mas o norte Deus deixou por terminar, para que a qualquer homem que afirmasse ser deus fosse oferecida a tarefa de suprir a deficiência, de modo a ser condenado como impostor.
A terra começou a ser construída pelo centro, com a pedra fundamental do Templo, a Eben Shetiyah, pois a Terra Santa é o ponto central da superfície da terra, Jerusalém é o ponto central da Palestina e o Templo está situado no centro da Cidade Santa. No santuário em si o Hekal é o centro, e a Arca santa ocupa o centro do Hekal, erigido sobre a pedra fundamental, que é dessa forma o centro da terra. Dali lançou-se o primeiro raio de luz, cortando a Terra Santa, e a partir dali iluminando toda a terra. A criação do mundo, no entanto, não poderia ter tomado lugar até que Deus banisse o senhor da escuridão. “Retire-se”, Deus disse a ele, “pois desejo criar o mundo através da luz”. Apenas depois que a luz havia sido formada surgiram as trevas, a luz governando o céu, as trevas a terra. O poder de Deus manifestou-se não apenas na criação do mundo de coisas, mas igualmente nas limitações que ele impôs sobre cada uma. Os céus e a terra estenderam-se em comprimento e largura como se aspirassem à infinitude, e foi preciso a palavra de Deus para colocar um limite no alcance deles.


Lendas dos Judeus é uma compilação de lendas judaicas recolhidas das fontes originais do midrash(particularmente o Talmude) pelo talmudista lituano Louis Ginzberg (1873-1953). Lendas foi publicado em 6 volumes (sendo dois volumes de notas) entre 1909 e 1928.
Tradução: Paulo Brabo

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