Se Deus existe...

Adoro conversar com crianças. Depois que tive a oportunidade de trabalhar numa ONG que desenvolve trabalho com os pequenos, esse prazer foi multiplicado. A conversa inocente, as perguntas difíceis, o jeito peculiar de lidar com os fatos me encanta. Uma vez uma criança estava observando sua mãe reclamar das contas que precisava pagar. A mãe, falando consigo mesma, diz: “Essas contas só me trazem estresse. O que eu vou fazer com tudo isso?” Sua filha, num ato de extrema inteligência e lógica, responde: “Queime tudo!” Em outro caso, a vovó estava se maquiando quando seu neto pergunta: “Vovó, por que você está fazendo isso?” “Pra ficar bonita, querido.” E o netinho responde: “E por que não fica?
Isso não é lindo? Como disse o Rubem Alves: “as criança ainda não aprenderam a encenar.” Elas não aprenderam o que dizer na hora que têm de dizer. Elas falam o que não devem (não devem?) no momento que ninguém quer ouvir.

Crianças são puras. Delas é o Reino dos Céus, afirmou o Nazareno.

Talvez um mundo governado por elas seja isso mesmo. O Reino dos Céus.

Observe comigo: Hoje, 20% da população do planeta sofre com a fome enquanto alguns países produzem comida para 4 vezes sua própria população. Alguns líderes políticos montam estratégias para utilizar vírus em armas biológicas em caso de uma guerra. Gasta-se trilhões de dólares por ano em material bélico. Estima-se que há gastos mensais em coisas fúteis que ultrapassam a quantia mínima para alimentar uma criança de rua. Recentemente o cachorro da minha prima foi atropelado e o custo para deixá-lo internado no hospital veterinário foi de R$ 400,00. Enquanto há milhares de pessoas deitadas em corredores de hospitais públicos esperando atendimento. Fui comprar uma calça semana passada e tive de sair da loja indignado quando a atendente me passou o preço: R$ 480,00 (em uma calça). Cara, R$ 480,00 é muito mais do que muita gente ganha em um mês com bicos e trabalhos simples. R$ 480,00 é o salário de um trabalhador (explorado). E há quem ganhe muito menos! Há governantes que gastam bilhões de dólares na construção de bankers para se refugiarem caso haja uma guerra biológica ou nuclear. Vejamos: eles desencadeiam uma guerra por causa de motivos políticos que não nos interessam, nós somos atingidos com isso, mas são eles que vão ser abrigados? Ou seja, os caras que tentam acabar com o mundo todo dia, pensam que precisam sobreviver. Pra que? Pra voltar  e acabar com tudo novamente?

Agora pense comigo: Voltemos as crianças. Um mundo governado por elas ofereceria isso? Uma vez uma aluna perguntou o porque de o ex-marido de sua tia ter tentado matá-la com um facão. O que eu podia responder? “Ah, os adultos são assim. Um dia você vai ser adulta e vai entender.” Uma vez minha prima de cinco anos de idade me perguntou porque o cara do filme estava matando o outro. O que eu poderia responder? “Ah, é só um filme. É assim que nós, adultos, nos entretemos, com a violência oferecida nos cinemas!

O mundo dos adultos criou armas, criou a desigualdade, o mundo dos adultos criou o preconceito, a inveja, o mundo dos adultos ridicularizou as crianças, zomba dos sonhos, mata as perguntas inocentes. O mundo dos adultos não quer responder o porque não devemos queimar as contas. Estamos mais preocupados em descobrir vida em outro planeta, em saber qual a melhor combinação de elementos para criar a bomba “perfeita”, como podemos usar a natureza a nosso favor para destruir uma cidade. O mundo dos adultos diz que não existe Papai Noel, diz que não há pote no fim do arco-íris, o mundo dos adultos diz pra não brincarmos com fulano porque ele é pobre, negro ou tem pais desestruturados. O mundo dos adultos diz pra não falar a verdade, diz que devemos alisar o ego dos outros, diz que devemos ser territorialistas, defensores de nossos ideias sem se importar com o que o outro diz, o mundo dos adultos ensina que a vida não passa de trabalho, ganância, corrupção e traições. O mundo dos adultos fez do sexo, vulgar, do álcool, droga, da verdade, escândalo, dos amigos, oportunistas, do amor, mentira!

Se Deus existe, Ele é uma criança! Não é um velho de barba grande, sentado num trono, segurando um cajado. Deus não é assim! Se Deus é amor, ele é criança, e se Ele é crianças, ele não mandou guerrear por seu nome, ele não mandou dominar as massas, não exigiu impérios construídos com o dinheiro de fiéis, ele não projetou um apocalipse, nem desenhou um inferno. Crianças desenham paraísos. Anjos, não demônios. Amor, não vingança. São os homens quem criam essas coisas. São os homens quem criam um deus que é a sua imagem e semelhança. Deus nos criou a sua imagem e semelhança, é por isso que nascemos crianças! Mas nós achamos que aumentar de tamanho por fora significa diminuir de tamanho por dentro. Quem disse isso? Ouvi falar de um cara que, com 33 anos de idade, se ofereceu no lugar do seu povo pra salvá-los. Ouvi falar de outro, cheio de rugas, que até hoje é sinônimo de paz, me contaram sobre uma mulher, bem velhinha, que fez da sua vida um canal de amor ao povo de Calcutá. Não importa a idade dessas pessoas, elas morreram crianças.

Conheço muita crianças com oitenta anos de idade.

Criança não é uma definição etária. Criança é o que somos quando nossa alma ainda está viva! Depois que matamos nossa alma, viramos adultos. Quando deixamos de pensar no simples com seriedade, deixamos de ser criança.

Eliab Alves Pereira


Oração [por Rubem Alves]

Hoje vou escrever sobre a arte de rezar. Dirão que esse não é tópico que devesse ser tratado por um terapeuta. Rezas e orações são coisas de padres, pastores e gurus religiosos, a serem ensinadas em igrejas, mosteiros e terreiros. Acontece que eu sei que o que as pessoas desejam, ao procurar a terapia, é reaprender a esquecida arte de rezar. Claro que elas não sabem disso. Falam sobre outras coisas, 10 mil coisas. Não sabem que a alma deseja uma só coisa, cujo nome esquecemos. Como disse T.S. Eliot, temos 

Conhecimento do movimento, mas não da tranquilidade; conhecimento das palavras e ignorância da Palavra. Todo o nosso conhecimento nos leva para mais perto da nossa ignorância, e toda a nossa ignorância nos leva para mais perto da morte. 

A terapia é a busca desse nome esquecido. E quando ele é lembrado e é pronunciado com toda a paixão do corpo e da alma, a esse ato se dá o nome de poesia. A esse ato se pode dar também o nome de oração. 

Por detrás da nossa tagarelice (falamos muito e escutamos pouco), está escondido o desejo de orar. Muitas palavras são ditas porque ainda não encontramos a única palavra que importa. Eu gostaria de demonstrar isso – e a demonstração começa com um passeio. Para começar, abra bem os olhos! Veja como este mundo é luminoso e belo! Tão bonito que Nietzsche até mesmo lhe compôs um poema: 

Olhei para este mundo – e era como se uma maçã redonda se oferecesse à minha mão, madura dourada maçã de pele de veludo fresco... Como se mãos delicadas me trouxessem um santuário, santuário aberto para o deleite de olhos tímidos e adorantes: assim este mundo hoje a mim se ofereceu...

Tudo está bem. Tudo está em ordem. Nada impede o deleite dessa dádiva. Ninguém doente. Nenhuma privação econômica terrível. E há mesmo o gostar das pessoas com quem se vive, sem o que a vida teria um gosto amargo. 

Mas isso não é tudo. Além das necessidades vitais básicas, a alma precisa de beleza. E a beleza – o mundo a serve de mancheias. Está em todos os lugares, na lua, na rua, nas constelações, nas estações, no mar, no ar, nos rios, nas cachoeiras, na chuva, no cheiro das ervas, na luz que cintila na água crespa das lagoas, nos jardins, nos rostos, nas vozes, nos gestos. 

Além da beleza, estão os prazeres que moram nos olhos, nos ouvidos, no nariz, na boca, na pele. Como no último dia da criação, temos de concordar com o Criador: olhando para o que tinha sido feito, viu que tudo era muito bom. 

E, no entanto, sem que haja qualquer explicação para esse fato, tendo todas as coisas, a alma continua vazia. Álvaro de Campos colocou esse sentimento num poema: 

Dá-me lírio, lírios, e rosas também. Crisântemos, dálias, violetas e girassóis acima de todas as flores. Mas por mais rosas e lírios que me dês, eu nunca acharei que a vida é bastante. Faltar-me-á sempre qualquer coisa. Minha dor é inútil como uma gaiola numa terra onde não há aves. E minha dor é silenciosa e triste como a parte da praia onde o mar não chega.

Como se uma nuvem cinzenta de tristeza-tédio cobrisse todas as coisas. A vida pesa. Caminha-se com dificuldade. O corpo se arrasta. As pessoas procuram terapia alegando faltar um lírio aqui, uma rosa ali, um crisântemo acolá. Buscam, nessas coisas, a única coisa que importa: a alegria. Acontece que as fontes de alegria não são encontradas no mundo de fora. É inútil que me sejam dadas todas as flores do mundo: as fontes da alegria se encontram no mundo de dentro. 

O mundo de dentro: as pessoas religiosas lhe dão o nome de alma. O que é a alma? Alma são as paisagens que existem dentro do nosso corpo. Nosso corpo é uma fronteira entre as paisagens de fora e as paisagens de dentro. E elas são diferentes. “Temos dois olhos”, disse o místico medieval Ângelus Silésius. “Com um, vemos as coisas que no tempo existem e desaparecem. Com o outro, as coisas divinas, eternas, que para sempre permanecem.” Em algum lugar escondido das paisagens da alma se encontram as fontes da alegria – perdidas. Perdidas as fontes de alegria, as paisagens da alma se apagam, o corpo fica como uma casa vazia. E quando a casa está vazia, vai-se a alegria. E as paisagens de fora ficam feias (a despeito de serem belas). 

O mundo de fora é um mercado onde pássaros engaiolados são vendidos e comprados. As pessoas pensam que, se comprarem o pássaro certo, terão alegria. Mas pássaros engaiolados, por mais belos que sejam, não podem dar alegria. Na alma não há gaiolas. 

A alegria é um pássaro que só vem quando quer. Ela é livre. O máximo que podemos fazer é quebrar todas as gaiolas e cantar uma canção de amor, na esperança de que ela nos ouça. Oração é o nome que se dá a esta canção para invocar a alegria. 

Muitas orações são produtos da insensatez das pessoas. Acham que o universo estaria melhor se Deus ouvisse os seus conselhos. Pedem que Deus lhes dê pássaros engaiolados, muitos pássaros. Nisso protestantes e católicos são iguais. Tagarelam. E nem se dão ao trabalho de ouvir. Não sabem que a oração é só um gemido. “Suspiro da criatura oprimida”: haverá definição mais bonita? São palavras de Marx. Suspiro: gemido sem palavras que espera ouvir a música divina, a música que, se ouvida, nos traria a alegria. 

Gosto de ler orações. Orações e poemas são a mesma coisa: palavras que se pronunciam a partir do silêncio, pedindo que o silêncio nos fale. A se acreditar em Ricardo Reis é no silêncio que existe no intervalo das palavras que se ouve a voz de “um Ser qualquer, alheio a nós”, que nos fala. O nome do Ser? Não importa. Todos os nomes são metáforas para o Grande Mistério inominável que nos envolve. Gosto de ler orações porque elas dizem as palavras que eu gostaria de ter dito, mas não consegui. As orações põem música no meu siliencio. 


Rubem Alves

Coragem

A palavra coragem é muito interessante. Ela vem da raiz latina "cor", que significa "coração". Portanto, ser corajoso significa viver com o coração. E os fracos, somente os fracos, vivem com a cabeça; receosos, eles criam em torno deles uma segurança baseada na lógica. Com medo, fecham todas as janelas e portas – com teologia, conceitos, palavras, teorias – e do lado de dentro dessas portas e janelas, eles se escondem.

O caminho do coração é o caminho da coragem. É viver na insegurança, é viver no amor e confiar, é enfrentar o desconhecido. É deixar o passado para trás e deixar o futuro ser. Coragem é seguir trilhas perigosas. A vida é perigosa. E só os covardes podem evitar o perigo – mas aí já estão mortos. A pessoa que está viva, realmente viva, sempre enfrentará o desconhecido. O perigo está presente, mas ela assumirá o risco. O coração está sempre pronto para enfrentar riscos; o coração é um jogador. A cabeça é um homem de negócios. Ela sempre calcula – ela é astuta. O coração nunca calcula nada.

Osho