As narrativas da criação em Gênesis, na verdade todos os onze primeiros capítulos do livro, nada mais são do que mitos contados como se fossem história. Ironicamente, no entanto, o efeito do mito tem sido muito mais forte na nossa sociedade do que na dos israelitas. Não é com frequência que os israelitas mencionam o jardim do Éden na literatura subsequente; nós, porém, sobrepomos de tal modo a história do jardim do Éden com comentários, remitologizamos de tal modo a narrativa, que os próprios hebreus provavelmente acabariam por considerá-la irreconhecível, para não dizer embaraçosa.
Nenhuma outra história teve efeito mais importante sobre o pensamento ocidental do que a narrativa do jardim do Éden. Em sua versão cristã, em especial, ela tem sido fonte das concepções ocidentais a respeito de vida, morte, imortalidade e sexualidade. Porém muito daquilo que associamos à história está ausente do texto em si; essas associações foram supridas por diversos contextos interpretativos ao longo dos séculos [...], por crentes piedosos que tentavam decifrar essa narrativa simples e até mesmo ingênua. Enquanto isso, os sutis sentidos originais foram removidos por nossas conceitualizações mais amplas.
A história explica acima de tudo que o discernimento moral nos confere uma natureza divina.
O próprio tema da aliança na Bíblia hebraica exige que os homens tenham discernimento moral. A aliança é um acordo formal entre Deus e a humanidade, e requer que os seres humanos o abracem por sua livre vontade. Para adentrar-se a aliança requer-se discernimento moral; ele é absolutamente necessário para a tarefa. Nesse sentido, a história de Adão e Eva, longe de ser apenas a história de como perdemos a imortalidade, pode ser melhor descrita como sendo “a história de como somos capazes de viver corretamente”, tendo recebido a faculdade crítica dodiscernimento moral e desenvolvido desse modo a habilidade de obedecer à aliança.
E não é só isso. Não apenas a capacidade de discernir certo e errado é a marca do ser humano maduro, mas há outro modo engraçado em que a história do jardim diz respeito à psicologia do desenvolvimento. Precisamente como crianças, o primeiro casal aprende o que é certo e o que é errado recebendo uma regra para obedecer, transgredindo essa regra e sendo punidos por essa razão. A narrativa está fundamentada na simples observação do modo como ensinamos nossos filhos a fazer os mesmos discernimentos.
Alan F. Segal, Life After Death
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