Lendas dos Judeus #09 (O sexto dia, continuação)


A CRIAÇÃO: O sexto dia, continuação
O GATO E O RATO
Embora todas as espécies do mundo animal tenham sido criadas durante os dois últimos dias da criação, muitas características de certos animais só surgiram mais tarde.
Gatos e camundongos, hoje inimigos, eram originalmente amigos. Sua inimizade atual teve uma origem específica. Certa ocasião o camundongo apareceu diante de Deus e disse:
– Eu e o gato somos parceiros, mas agora não temos o que comer.
O Senhor respondeu:
– Você está conspirando contra o seu companheiro só para poder devorá-lo. Como punição ele é que vai devorar você.
Disse o camundongo:
– Ó, Senhor do mundo, o que eu fiz de errado?
Deus replicou:
– Ah, verme impuro, você deveria ter aprendido com o exemplo da lua, que perdeu parte da sua luz por ter falado mal do sol, e o que ela perdeu foi dado a seu oponente. As más intenções que você nutre contra o seu companheiro serão punidas da mesma maneira. Ao invés de devorar o gato, ele é que irá devorar você.
O camundongo:
– Ó, Senhor do mundo! Toda minha espécie será exterminada?
Deus:
– Vou cuidar para que um remanescente seu seja poupado.
Em sua indignação o camundongo mordeu o gato, e o gato por sua vez atirou-se sobre o camundongo, perfurando-o com os dentes até matá-lo. Desde aquele momento o camundongo tem tamanho pavor do gato que não tenta nem mesmo se defender dos ataques do inimigo, e vive escondido.
CÃES E GATOS
Do mesmo modo, cães e gatos desfrutavam de uma relação amigável, e só mais tarde tornaram-se inimigos. Cão e gato eram parceiros, e compartilhavam um com o outro do que quer que tivessem. Aconteceu certa vez que nenhum dos dois foi capaz de encontrar coisa alguma para comer por três dias. O cachorro então propôs que encerrassem a parceria. O gato iria até Adão, cuja casa teria por certo o bastante para ele comer, enquanto o cachorro tentaria a sorte em outro lugar. Antes de se separarem os dois juraram jamais recorrer ao mesmo mestre. O gato foi habitar com Adão, e encontrou camundongos em número suficiente para satisfazer o seu apetite. Vendo o quanto era útil para espantar e exterminar os camundongos, Adão passou a tratar o gato com toda gentileza.
O cachorro, por sua vez, passou maus bocados. Na primeira noite depois da separação ele dormiu na caverna do lobo, que havia-lhe oferecido abrigo por uma noite. Durante a noite o cão ouviu passos e foi contar a seu hospedeiro, que disse que ele fosse expulsar os intrusos. Eram animais selvagens, e o cachorro por pouco não perdeu a vida. Desconsolado, o cachorro fugiu da casa do lobo e foi buscar refúgio com o macaco. Este recusou-se a conceder a ele abrigo por uma noite que fosse, e o fugitivo foi forçado a apelar para a hospitalidade da ovelha. Novamente o cão ouviu passos no meio da noite. Obedecendo ao comando de sua hospedeira ele saiu em perseguição dos ladrões, que revelou-se no fim das contas serem lobos. O latido do cachorro informou os lobos da presença da ovelha, de modo que ele causou inocentemente a morte dela.
O cão havia agora perdido seu último amigo. Noite após noite ele saía pedindo abrigo, sem jamais encontrar um lar. Ele finalmente decidiu retornar à casa de Adão, que também concedeu-lhe abrigo por uma noite. Quando os animais selvagens aproximaram-se da casa, sob o manto da escuridão, o cão começou a latir e Adão acordou, expulsando-os em seguida com seu arco e flecha. Reconhecendo a utilidade do cachorro, Adão pediu que ele permanecesse para sempre. Porém logo que viu o cachorro na casa de Adão o gato começou a discutir com ele, repreendendo-o por ter violado seu juramento. Adão fez o melhor que pôde para apaziguar o gato: disse que ele mesmo tinha convidado o cão a fazer dali a sua casa, e assegurou que o gato não perderia nenhum privilégio com a presença do cachorro; ele queria que os dois ficassem com ele. Mas foi impossível aplacar o gato. O cão prometeu não tocar nem o gato nem qualquer coisa destinada a ele, mas o gato disse que não podia viver na mesma casa com um ladrão como o cachorro. As disputas entre cão e gato tornaram-se a ordem do dia. Finalmente o cão disse que não agüentava mais e deixou a casa de Adão, dirigindo-se á de Sete. Ele foi acolhido com carinho por Sete e, da casa de Sete, continuou seus esforços de reconciliação com o gato. Em vão. Sim, a inimizade entre o primeiro cão e o primeiro gato são até hoje transmitidas a seus descendentes.
A BOCA DO CAMUNDONGO
Até mesmo as peculiaridades físicas de determinados animais não faziam parte do seu aspecto original, mas devem sua existência a algo que ocorreu depois dos dias da criação. O camundongo tinha a princípio uma boca muito diferente da atual. Na Arca de Noé, na qual todos os animais viviam pacificamente a fim de garantir a preservação de cada espécie, o par de camundongos estava sentado perto do gato. De repente esse último lembrou que seu pai tinha o hábito de devorar ratos; pensando que não havia mal algum em seguir o seu exemplo, o gato saltou sobre o camundongo, que procurava sem sucesso por um buraco por onde escapar. Então um milagre aconteceu: apareceu um buraco onde não havia existido nenhum, e o camundongo buscou abrigo ali. O gato perseguiu o camundongo, e embora não pudesse segui-lo buraco adentro, conseguia enfiar a pata, tentando tirar o camundongo de seu esconderijo. Depressa o camundongo abriu a boca na esperança de que a pata entrasse nela, e o gato fosse assim impedido de apertar as garras contra sua carne. Mas como a cavidade da boca não era grande o bastante o gato conseguiu abrir com as garras as bochechas do camundongo. Isso não ajudou muito, pois apenas alargou a boca do rato, e a presa acabou escapando. Depois de sua escapada feliz o camundongo aproximou-se de Noé e disse:
– Ó, homem piedoso, costure por gentilza a minha bochecha onde abriu-a meu inimigo, o gato.
Noé mandou que ele trouxesse um cabelo do rabo do porco, e com este ele reparou o dano. Daí originou-se a linha com marca de costura na boca de todo camundongo, até os nossos dias.
O CORVO
O corvo é outro animal que mudou sua aparência durante sua estada na arca. Quando Noé pensou em enviá-lo para averigüar o estado das águas, o corvo escondeu-se sob as asas da águia. Porém Noé encontrou-o e disse:
– Vá ver se as águas baixaram.
O corvo implorou:
– Não tem outro pássaro que você possa enviar nessa missão?
Noé:
– Meu poder estende-se apenas sobre você e sobre a pomba.
Mas o corvo não estava satisfeito, e disse a Noé com grande insolência:
– Você está me enviando apenas para que eu encontre a morte, e deseja a minha morte para que minha esposa esteja a seu serviço.
Por essa razão Noé amaldiçoou o corvo da seguinte forma:
– Que sua boca, que falou mal de mim, seja maldita, e seja sua cópula com sua esposa realizada apenas através dela.
Todos os animais da arca disseram “Amém”. É por essa razão que uma massa de saliva escorre da boca do corvo macho para dentro da boca da fêmea durante a cópula, e é só assim que ela é fecundada.
No todo o corvo é um animal sem atrativos. Ele permanece hostil com seus filhotes até que seus corpos estejam cobertos de penas negras, embora como regra geral os corvos amem uns aos outros. Deus, por essa razão, coloca os corvos jovens debaixo de sua proteção especial. Do excremento dos filhotes nascem vermes, que lhes servem de alimentos nos três dias após o nascimento, até que as penas brancas tornem-se negras e seus pais reconheçam-nos como sua prole e passem a cuidar deles.
A culpa pelo desajeitado saltitar do corvo é dele mesmo. Observando o passo gracioso da pomba ele ficou com inveja e tentou imitá-lo. Como resultado ele quase quebrou todos os ossos, sem nisso chegar perto de conseguir qualquer semelhança com a pomba, sem mencionar que angariou contra si mesmo a zombaria de todos os outros animais. Seu fracasso suscitou o escárnio deles. Ele decidiu então retomar seu andar original, mas descobriu que no intervalo o havia desaprendido. Como não era capaz de andar de um jeito ou de outro, seu passo tornou-se um saltitar entre os dois. Nisso vemos quão verdadeiro é que quem não está satisfeito com sua modesta porção acaba perdendo o pouco que tem na luta por coisas melhores e mais vultosas.
O NOVILHO
O novilho é outro animal que sofreu mudanças com o passar do tempo. Originalmente sua cabeça era completamente coberta de pelos, mas hoje em dia ele não tem pelos no focinho, porque Josué beijou-o no focinho durante o cerco de Jericó. Josué era um homem extraordinariamente pesado. Cavalos, jumentos e mulas não podiam com ele, partindo-se todos sob seu peso. Do que eles não conseguiram fazer o novilho mostrou-se capaz. Em seu lombo Josué cavalgou durante o cerco de Jericó, e em gratidão concedeu-lhe um beijo no focinho.
A SERPENTE, A TOUPEIRA E O SAPO
A serpente também é diferente do que era no princípio. Antes da queda do homem ela era o mais sagaz dos animais criados, e em aparência lembrava de perto o homem. Andava em pé, e tinha tamanho extraordinário. Depois da queda a serpente perdeu todas as vantagens intelectuais que possuía em relação aos outros animais, e degenerou também fisicamente: foi privada de pés, de modo a não poder perseguir outros animais e matá-los. A toupeira e o sapo também tiveram de ser feitos inofensivos de modo similar; o primeiro não tem olhos, do contrário seria invencível, e o sapo não tem dentes, do contrário nenhum animal aquático poderia sobreviver.
A RAPOSA
Enquanto a sagacidade da serpente causou sua ruína, a sagacidade da raposa manteve-a em posição vantajosa numa situação difícil. Depois que Adão cometeu o pecado da desobediência Deus entregou todo o reino animal ao poder do Anjo da Morte, e ordenou que ele jogasse um par de cada espécie na água. Ele e o leviatã teriam juntos, dessa forma, domínio sobre tudo que tem vida. Quando o Anjo da Morte estava para executar a ordem divina sobre a raposa, esta começou a chorar amargamente. O Anjo da Morte perguntou a razão para as lágrimas, e a raposa respondeu que estava lamentando o triste destino de seu amigo. Neste ponto ela apontou para a imagem de uma raposa no mar, que nada mais era que seu próprio reflexo na água. O Anjo da Morte, persuadido de que um representante da família da raposa já havia sido atirado na água, deixou-a ir. A raposa contou esse truque ao gato, que usou-o também contra o Anjo da Morte. Assim acontece que nem gatos nem raposas estão representados no mar, embora todos os outros animais estejam.
Quando passava os animais em revista o leviatã notou a ausência da raposa, e foi informado do modo astuto pelo qual ela havia se esquivado de sua autoridade. Ele enviou peixes grandes e poderosos na missão de atraírem o ausente para dentro da água.
Andando na beira da água, a raposa notou o grande número de peixes, e exclamou:
– Feliz de quem pode quando quiser satisfazer sua fome com peixes como esses.
O peixe disse-lhe que bastava que ele os seguisse e seu apetite seria satisfeito com facilidade. No mesmo momento informaram a raposa da grande honra que a aguardava. O leviatã, disseram eles, estava às portas da morte, e ele os havia enviado a fim de designarem a raposa como seu sucessor. Os peixes estavam prontos para carregar a raposa nos dorsos, de modo que ela não precisava temer a água, e assim conduziriam-na até o trono, que ficava sobre um enorme rochedo. A raposa cedeu a essas persuasões, e desceu até a água. No mesmo momento um sentimento de incomodação tomou posse dela. A raposa começou a suspeitar que as mesas haviam sido viradas, e que ela estava sendo feita de caça, ao invés de fazer os outros de caça como costumava acontecer. Ela insistiu que os peixes lhe contassem a verdade, e eles admitiram quem haviam sido mandados para prendê-la para o leviatã, que queria seu coração a fim de se tornar tão sábio quanto a raposa, cuja sabedoria ele tinha visto muitos louvarem. A raposa disse em tom de repreensão:
– Por que não me disseram a verdade de uma vez? Eu poderia ter trazido meu coração comigo para o rei Leviatã, que teria me coberto de honras. Agora vocês sofrerão por certo grave punição por não terem trazido comigo meu coração. As raposas, vejam, não carregam seus corações consigo, mas mantém-nos num lugar seguro, e só quando precisam dele retiram-no dali.
Os peixes nadaram depressa até a praia, onde deixaram a raposa, para que ela pudesse ir buscar seu coração. Mal havia colocado os pés em terra firme a raposa começou a saltitar e a bramir. Quando mandaram-na ir em busca do seu coração e segui-los, ela disse:
– Tolos, como eu poderia tê-los seguido água adentro, se meu coração não estivesse comigo? Ou existe então alguma criatura que possa sair por aí sem seu coração?
Os peixes responderam:
– Venha, venha de uma vez, isso é brincadeira sua.
Retrucou a raposa:
– Tolos, se fui capaz de passar a perna no Anjo da Morte, quanto mais em vocês?
Os peixes tiveram então de voltar, fracassada sua missão, e o leviatã não teve escolha a não ser confirmar o julgamento provocador da raposa:
– De fato, a raposa é sábia de coração, e vocês, tolos.


Lendas dos Judeus é uma compilação de lendas judaicas recolhidas das fontes originais do midrash(particularmente o Talmude) pelo talmudista lituano Louis Ginzberg (1873-1953). Lendas foi publicado em 6 volumes (sendo dois volumes de notas) entre 1909 e 1928.
Tradução: Paulo Brabo

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