ADÃO: A queda do homem
Entre os animais a serpente era notável. De todos ela possuía as mais excelentes qualidades, nalgumas das quais assemelhava-se ao homem. Como o homem ela caminhava sobre dois pés, e tinha o peso igual ao de um camelo. Não fosse a queda do homem, que trouxe infortúnio também sobre elas, bastaria um par de serpentes para realizar todo o trabalho que o homem tem de fazer; além disso, elas teriam lhe fornecido prata, ouro, jóias e pérolas. Na verdade, foi justamente essa habilidade da serpente que causou a ruína do homem e sua própria ruína. Seus dons intelectuais superiores levaram-na a ser infiel. Isso também explica a inveja que tinha do homem, especialmente de suas relações conjugais. A inveja da serpente fez com que ela imaginasse diversos modos e maneiras de ocasionar a morte de Adão. Ela conhecia bem demais o caráter do homem para tentar exercitar seus exercícios de persuasão sobre ele, por isso abordou a mulher, sabendo que as mulheres são facilmente enganadas.
“DA MESMA FORMA QUE ELE CRIA E DESTRÓI MUNDOS…”
Sua conversa com Eva foi habilmente planejada, de modo à mulher não ter como escapar da armadilha. A serpente começou:
– É verdade que Deus disse “vocês não podem comer de toda árvore do jardim”?
– Podemos – respondeu Eva – comer o fruto de todas as árvores do jardim, exceto daquela que fica no meio do jardim. Essa não devemos nem mesmo tocar, para que não sejamos feridos de morte.
Ela disse assim porque em seu zelo de guardá-la de transgredir o mandamento divino Adão havia proibido Eva de tocar a árcore, embora Deus tivesse mencionado apenas o consumo do fruto. Permanece verdadeiro o provérbio que diz: “melhor um muro firme de dez palmos de altura do que um de cem metros que não tem como ficar em pé”. Foi o exagero de Adão que permitiu à serpente persuadir a mulher a provar do fruto proibido. A serpente empurrou Eva contra a árvore e disse:
– Está vendo? Tocar a árvore não causou a sua morte. Comer o fruto da árvore também não vai lhe fazer mal algum. Não foi nada menos que perversidade que induziu a proibição, pois assim que comerem vocês serão como Deus. Da mesma forma que ele cria e destrói mundos, vocês terão também o poder de criar e destruir. Da mesma forma que ele mata e faz voltar à vida, vocês terão também o poder de matar e reviver. Ele mesmo comeu o primeiro fruto da árvore, e criou em seguida o mundo. É por isso que ele os proibiu de comer, para que vocês não criem outros mundos. Todo mundo sabe que artesãos do mesmo ofício odeiam uns aos outros. Além disso, vocês não perceberam que toda criatura tem autoridade sobre a criatura criada antes dela mesma? O céu foi feito no primeiro dia e é mantido no lugar pelo firmamento, feito no segundo dia. O firmamento, por sua vez, está submetido às plantas, criadas no terceiro dia, pois elas absorvem toda a água do firmamento. O sol e os outros corpos celestes, criados no quarto dia, exercem domínio sobre o mundo das plantas, que podem amadurecer seus frutos e florescer apenas através da influência deles. A criação do quinto dia, o mundo animal, exerce domínio sobre as esferas celestes; veja o ziz, que pode escurecer o sol com suas asas. Mas vocês são mestres de toda a criação, porque foram os últimos a serem criados. Comam depressa o fruto da árvore que está no meio do jardim e tornem-se independentes de Deus, para que não aconteça que ele produza novas criaturas que exerçam domínio sobre vocês.
“ELE MESMO COMEU O PRIMEIRO FRUTO DA ÁRVORE”.
Para dar peso a essas palavras, a serpente começou a sacudir violentamente a árvore, fazendo cair seus frutos. Ela comeu deles, e disse:
– Da mesma forma que eu não morro comendo do fruto, vocês também não morrerão.
Eva nada pôde fazer além de dizer a si mesma: “Tudo que meu mestre me ordenou (pois era assim que ela chamava Adão) não passam de mentiras!”. E estava determinada a seguir o conselho da serpente. Ela porém não conseguiu forçar-se a desobedecer o mandamento de Deus por completo. Eva chegou a um meio-termo com sua consciência: comeu primeiro só a casca da fruta; em seguida, vendo que a morte não lhe sobrevinha, comeu o fruto em si.
Mal havia terminado, ela viu o Anjo da Morte diante de si. Esperando que seu fim chegasse imediatamente, Eva determinou fazer Adão também comer do fruto proibido, para que ele não se casasse com outra mulher depois da sua morte. Foram necessários lágrimas e queixumes da parte dela para convencer Adão a tomar o passo fatídico. Não satisfeita, Eva deu o fruto a todos os seres vivos, para que estivesse também sujeitos à morte. Todos comeram e são todos mortais, com exceção do pássaro malham, que recusou o fruto com as seguintes palavras:
– Não basta vocês terem pecado contra Deus e terem trazido a morte sobre outros? Vocês vêem ainda até mim, tentando me persuadir a desobedecer o mandamento de Deus, para que eu coma e morra por causa disso? Não vou fazer o que vocês estão querendo.
“ALÉM DISSO, VOCÊS NÃO PERCEBERAM QUE TODA CRIATURA TEM DOMÍNIO SOBRE A CRIATURA CRIADA ANTES DELA MESMA?”
Ouviu-se então uma voz celestial que disse a Adão e Eva:
– A vocês a ordem foi dada, e vocês não a obedeceram. Ao contrário, transgrediram-na e tentaram persuadir o pássaro malham a fazer o mesmo. Ele foi fiel e me temeu, muito embora eu não tivesse dado a ele mandamento algum. Afirmo portanto que ele jamais provará a morte, nem ele nem os seus descendentes: viverão todos para sempre no Paraíso.
Adão disse a Eva:
– Você me deu da árvore que eu a proibi de comer? Você me deu dela sim, pois meus olhos se abriram, e estou com um azedo nos dentes1 da boca.
Eva respondeu:
– Se tenho um azedo nos dentes, que os dentes de todos os seres vivos tenho o azedo também.
O primeiro resultado foi que Adão e Eva ficaram nus. Antes disso seus corpos haviam estado cobertos por uma pele córnea, e envoltos na nuvem da glória. Mal haviam violado o mandamento dado eles, caíram deles a nuvem de glória e a pele córnea, e ficaram ali em sua nudez, envergonhados. Adão tentou juntar folhas de árvores para cobrirem seus corpos, mas ouviu uma árvore após a outra dizer:
– Esse é o ladrão que enganou seu Criador. Não! Não virá contra mim o pé da insolência, nem me tocará a mão2 do perverso!
Apenas a figueira deu-lhe permissão de tirar suas folhas, porque o figo era ele mesmo o fruto proibido. Adão teve a mesma experiência do príncipe que seduziu uma das camareiras do palácio. Quando o rei, seu pai, saiu em seu encalço, ele buscou em vão refúgio entre as outras camareiras, mas apenas a que havia ocasionado a sua desgraça prestou-lhe assistência.
Lendas dos Judeus é uma compilação de lendas judaicas recolhidas das fontes originais do midrash(particularmente o Talmude) pelo talmudista lituano Louis Ginzberg (1873-1953). Lendas foi publicado em 6 volumes (sendo dois volumes de notas) entre 1909 e 1928.
Tradução: Paulo Brabo