Cristianismo Puro e Simples [3]


Pediram para que eu lhes dissesse em que os cristãos acreditam, mas vou falar antes sobre uma coisa em que eles não precisam acreditar. Se você é cristão, não preci­sa acreditar que todas as outras religiões estão simples­mente erradas de cabo a rabo. Se você é ateu, é obrigado a acreditar que o ponto de vista central de todas as reli­giões do mundo não passa de um gigantesco erro. Se você é cristão, está livre para pensar que todas as religiões, mes­mo as mais esquisitas, possuem pelo menos um fundo de verdade. Quando eu era ateu, tentei me convencer de que a raça humana sempre estivera enganada sobre o as­sunto que lhe era mais caro; quando me tornei cristão, pude adotar uma opinião mais liberal sobre o assunto.

É claro, no entanto, que, pelo fato de sermos cristãos, nós temos efetivamente o direito de pensar que, onde o cristianismo difere das outras religiões, ele está certo e as outras, erradas. É como na aritmética: para uma de­terminada soma, só existe uma resposta certa, e todas as outras estão erradas; porém, algumas respostas erradas estão mais próximas da certa do que as outras.
A primeira grande divisão da humanidade se dá en­tre a maioria que acredita em alguma espécie de Deus, ou deuses, e a minoria que não acredita. Nesse ponto, os cristãos se juntam à maioria - os gregos e romanos da Antigüidade, os selvagens modernos, os estóicos, os pla­tônicos, os hindus, os maometanos etc, contra o materialismo europeu ocidental moderno.
Passo agora à grande divisão seguinte. As pessoas que acreditam em Deus podem ser agrupadas de acordo com o tipo de Deus em que acreditam. Neste assunto, existem duas concepções bem diferentes uma da outra. Uma delas é a de que ele está acima do Bem e do Mal. Nós, seres humanos, dizemos que uma coisa é má e outra é boa. De acordo com alguns, porém, esse é um mero ponto de vista humano. Essas pessoas diriam que, quanto mais sábios nos tornamos, menos nos interes­samos por classificar as coisas dessa maneira, e nos da­mos conta com clareza cada vez maior de que tudo é bom sob certo ponto de vista e mau sob outro, e que nada poderia ser diferente do que é. Em conseqüência, essas pessoas crêem que, antes mesmo de nos aproximarmos do ponto de vista divino, essa distinção desaparece to­talmente. Nós consideramos o câncer mau, diriam elas, porque ele mata pessoas; mas poderíamos igualmente chamar um cirurgião de mau porque ele mata o câncer. Tudo depende do ponto de vista. A outra idéia, oposta a esta, é de que Deus é definitivamente "bom" ou "jus­to", é um Deus que toma partido, que ama o amor e odeia o ódio, que quer que nos comportemos de uma forma e não de outra. O primeiro ponto de vista - o de um Deus acima do Bem e do Mal - é chamado panteísmo. Foi sustentado por Hegel, o grande filósofo prus­siano, e, na medida em que posso compreendê-los, pe­los hindus. O outro ponto de vista é sustentado pelos judeus, maometanos e cristãos.

Essa grande diferença entre o panteísmo e a idéia cristã de Deus normalmente traz outra a reboque. Os panteístas em geral acreditam que Deus, para usar uma metáfora, anima o universo como nós animamos o cor­po: o universo quase é Deus, de tal modo que, se o uni­verso não existisse, Deus também não existiria, pois todos os seres do universo fazem parte dele. A idéia cristã é bem diferente. Os cristãos pensam que 

Deus inventou e criou o universo como um homem que pinta um quadro ou compõe uma música. Um pintor não é o que ele pinta e não vai morrer se o quadro for destruído. Quando di­zemos que "ele infundiu sua alma na pintura", só que­remos dizer que a beleza e o fascínio que o quadro des­perta vieram da mente dele. A habilidade dele não está presente na tela da mesma forma que está presente em sua cabeça ou mesmo em suas mãos. Acho que você já compreendeu que a diferença entre panteístas e cristãos segue essa mesma linha. Se você não leva muito a sério a distinção entre o Bem e o Mal, é fácil dizer que qual­quer coisa que encontra no mundo é uma parte de Deus. Por outro lado, se acha que certas coisas são realmente más e Deus é realmente bom, já não pode falar dessa ma­neira. Tem de acreditar que existe uma separação entre Deus e o mundo e que certas coisas que vemos são con­trárias à sua vontade. Confrontado com o câncer ou com a miséria, o panteísta pode dizer: "Se pudéssemos ver as coisas do ponto de vista divino, nos daríamos conta de que isso também é Deus." O cristão retruca: "Não diga essa maldita asneira!" O cristianismo é uma religião aguerrida. Para o cristão, Deus criou o mundo - "tirou de sua cabeça" o espaço e o tempo, o calor e o frio, todas as cores e sabores, todos os animais e vegetais, como um homem que cria uma história. Por outro lado, para o cristianismo, muitas das coisas criadas por Deus caíram no erro, e Deus insiste - aliás, de forma enfática - em co­locá-las de volta no lugar.

Com isto, é claro, surge uma pergunta difícil. Se um Deus bom criou o mundo, por que esse mundo deu errado? Por muitos anos, recusei-me a ouvir as respos­tas cristãs à pergunta, pois tinha a sensação persistente de que "o que quer que vocês digam, por mais astutos que sejam seus argumentos, não é muito mais simples e mais fácil afirmar que o mundo não foi feito por um poder dotado de inteligência? As argumentações de vo­cês não são apenas uma complicada tentativa de fugir ao óbvio?" Mas, através disso, acabei deparando com outra dificuldade.
Meu argumento contra Deus era o de que o uni­verso parecia injusto e cruel. No entanto, de onde eu tirara essa idéia de justo e injusto? Um homem não diz que uma linha é torta se não souber o que é uma linha reta. 

Com o que eu comparava o universo quando o cha­mava de injusto? Se o espetáculo inteiro era ruim do começo ao fim, como é que eu, fazendo parte dele, po­dia ter uma reação assim tão violenta? Um homem sen­te o corpo molhado quando entra na água porque não é um animal aquático; um peixe não se sente assim. 

E claro que eu poderia ter desistido da minha idéia de justiça dizendo que ela não passava de uma idéia particular minha. Se procedesse assim, porém, meu argu­mento contra Deus também desmoronaria - pois de­pende da premissa de que o mundo é realmente injusto, e não de que simplesmente não agrada aos meus capri­chos pessoais. Assim, no próprio ato de tentar provar que Deus não existe - ou, por outra, que a realidade como um todo não tem sentido -, vi-me forçado a ad­mitir que uma parte da realidade - a saber, minha idéia de justiça- tem sentido, sim. Ou seja, o ateísmo é uma solução simplista. Se o universo inteiro não tivesse sen­tido, nunca perceberíamos que ele não tem sentido - do mesmo modo que, se não existisse luz no universo e as criaturas não tivessem olhos, nunca nos saberíamos imer­sos na escuridão. A própria palavra escuridão não teria significado.

continua...

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