O novo céu

Meu amigo Ricardo Quadros Gouvêa, que comete diariamente a indiscrição de ser mais erudito e antenado do que eu, reagiu por email ao meu O crepúsculo dos deuses oferecendo uma sacada ao mesmo tempo brilhante e simples: descartado o sonho da exploração do espaço, o destino de migração redentora da cultura ocidental passou a ser o mundo cibernético — o universo da internet, da nuvem, dos smartphones, das redes sociais e dos computadores.
Hoje a ficção científica tem explorado outros reinos, como o da computação e virtualização. Creio que é aí, Paulo, que está acontecendo a construção de um novo mito redentivo — conforme Charles Stross, Vernor Vinge e até mesmo William Gibson e Bruce Sterling.

Agora que o Gouvêa me abriu os olhos para o evidente, não consigo pensar em outra coisa: se cada época tem seu próprio “mito de migração redentora”, subalterno ao seu mito principal, o “lugar melhor” das nossas presentes esperanças e ilusões é o espaço cibernético.
Porque não deve haver dúvida, antes de tudo, que a internet (nossa grande janela comunitária para essas realidades) é para nós um lugar. Embora seja na verdade uma rede incorpórea e espiritual de zeros e uns, falamos da internet como de um mar em que se navega: um domínio geográfico com legítimos destinos, endereços e pontos de referência. Aqui há sítios que se pode visitar, bibliotecas que se pode vasculhar, parques de diversões em que se pode viver, pontos de encontro em que se pode rever os amigos. Um ciberespaço, para usar o termo de William Gibson.

Também não deve haver dúvida de que enxergamos nesse universo alternativo um destino redentor. Essa expectativa se aplica e se manifesta em pelo menos dois níveis.
No primeiro nível o mundo virtual é um destino redentor porque é para ele que podemos fugir, agora mesmo, das aflições mais imediatas da existência. Se a experiência cotidiana nos derruba e oprime, no abrigo da internet podemos ser finalmente quem somos, livres das limitações e constrangimentos da vida real.

Na internet ninguém precisa envelhecer, e você pode usar para identificar o seu perfil aquela foto boa de 2002. Os relacionamentos virtuais dispensam os embaraços, cheiros, ruídos e usanças da vida real: você não precisa fechar a porta do banheiro, pode sair da conversa tão repentinamente quanto quiser, é livre para deixar a escova de dentes em cima da pia, tem autonomia para descartar um parceiro em favor de outro sem precisar mover-se da cadeira.
No oásis do ciberespaço alguém está sempre pronto pra te entender e pra te desejar: aqui você encontra gente apaixonada por aqueles assuntos interessantes que sua família e seus amigos insistem em ignorar, e acha estímulo e vazão para todas as suas imaginações sexuais.
Resistir é inútil: estar sozinho com a internet é ter toda a companhia e todo o conforto que alguém pode desejar. Ninguém na sua casa te entende, mas @pikachu1981 quer te levar para a cama. Você pode se sentir solitário, mas o Matheus Feltrinelli acaba de visitar o seu perfil no Facebook. As raposas tem suas tocas e as aves tem seus ninhos, mas aqui você tem onde reclinar a cabeça. A Terra pode estar encolhendo, mas o universo da internet está em permanente expansão, e só estamos contemplando os primeiros segundos de seu irresistível Big Bang.

Este domínio de plenitude e de realização, que está em todo lugar estando em lugar nenhum, é o céu do terceiro milênio. E, com um novo céu desses, quem precisa de uma nova terra?
Nosso interesse nas possibilidades e contradições desse paraíso se manifesta claramente no segundo nível, o nível literário, da articulação dessa mitologia. Porque nos últimos anos a ficção científica tem adotado o espaço cibernético como um destino de migração redentora no sentido mais literal da coisa. Na cultura pop a profecia mais antiga dessa visão foi articulada pelo filme Tron, de 1982, em que o protagonista é sugado para aventuras dentro do “mundo eletrônico” do computador. Nas décadas seguintes o sonho de uma realidade virtual pesada, indistinguível da experiência da realidade física, voltou à superfície em O passageiro do futuro, de 1992, e encontrou o seu pleno esplendor em Matrix (1999), que gerou mil filhos e está longe de perder a fertilidade.
Este representa, no entanto, o aspecto mais superficial dessa discussão, aquele que emerge para o grande público através de Hollywood. Como bem lembrou o Gouvêa, grande parte da literatura de ficção científica das últimas décadas, desde pelo menos a década de 1980, tem de uma forma ou de outra se ocupado da temática das realidades virtuais que a tecnologia pode desvendar ao homem e além do homem.

Tendo nossa cultura se desiludido do sonho da exploração do espaço, na literatura mais recente de ficção científica apocalíptica a migração redentora da humanidade passou a ser representada, alternativamente, como [1] um encontro com a eternidade pelo mergulho definitivo no mundo cibernético, onde estaremos para sempre livres das limitações da carne, ou [2] a criação, como resultado do avanço da tecnologia, de uma nova inteligência que nos ultrapassará e nos justificará eternidade adentro.

Na linguagem de Vernon Vinge esse segundo apocalipse se chama Singularidade: o momento futuro ou iminente em que a tecnologia humana acabará produzindo uma inteligência sobre-humana, inteligência cuja entrada em cena produzirá consequências que nós — meramente humanos que somos — somos estruturalmente incapazes de prever.
Isso para não falar de gente como Nick Bostrom, professor de Filosofia da universidade de Oxford, que parou um dia para ponderar a probabilidade de que eu e você já estejamos, neste momento, vivendo numa simulação dentro de um espertíssimo computador criado por uma civilização avançada. Porque, afinal de contas, “é em princípio inteiramente possível implementar uma mente humana num computador suficiente rápido”. Se os computadores que temos hoje em dia são capazes de simulações incrivelmente complexas, explica Bostrom, a lógica exige que tomemos como verdadeira uma das seguintes três informações:

  1. As chances de que uma espécie no nosso atual nível de desenvolvimento seja capaz de alcançar a maturidade tecnológica, evitando a extinção, são incrivelmente pequenas;
  2. Praticamente nenhuma civilização tecnologicamente madura demonstra interesse em rodar simulações computadorizadas de mentes como as nossas;
  3. Você com quase toda a certeza existe dentro de uma simulação.

Ou seja, no estágio tateante em que se encontra, a tecnologia já nos forneceu metáforas — desafios e ferramentas — que são, por assim dizer, pós-humanas. Com elas nos tornamos capazes de pulverizar a realidade e sonhar o momento talvez não muito distante em que seremos, nós mesmos, tecnologia obsoleta e ultrapassada. Graças a essas ferramentas, ganhamos ainda a terrível clareza da incerteza: nenhum de nós tem mais como dizer ao certo se está dentro ou fora do que costumávamos chamar de realidade, ou de que lado da Singularidade está olhando para a experiência.


Texto de Paulo Brabo

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