Traves contorcidas e podres


(...) O imperador da Alemanha explicou recentemente, com maior precisão, a missão do soldado, agradecendo e recompensando um soldado que havia matado um prisioneiro indefeso que tentava fugir. Recompensando uma ação sempre considerada como vil e infame, até mesmo por homens do mais baixo grau de moralidade, Guilherme II mostrou que o dever principal e mais apreciado do soldado é ser carrasco, e não como um carrasco profissional que só mata os criminosos condenados, mas carrasco de todos os inocentes que o chefe lhe ordena matar.

Mas ainda não é tudo. Em 1892, o mesmo Guilherme, o enfant terrible do poder, que diz em voz alta o que os outros se contentam em pensar, disse publicamente o que se segue, reproduzido no dia seguinte por um sem-número de jornais.

Recrutas! Diante do altar e do servo de Deus, vós me haveis jurado lealdade! Sois ainda demasiado jovens para compreender toda a importância do que aqui foi dito, mas cuidai antes de tudo de obedecer às ordens e às instruções que vos serão dadas. Vós me haveis jurado, jovens da minha guarda; agora sois, portanto, meus soldados, a mim pertenceis, pois, de corpo e alma. Para vós, hoje, não existe senão um inimigo, aquele que é meu inimigo. Com os atuais ardis socialistas, poderia ocorrer que eu vos ordenasse disparar em vossos parentes, em vossos irmãos, também em vossos pais, em vossas mães [que Deus não permita]; ainda assim devereis obedecer às minhas ordens sem hesitar.

Esse homem exprime tudo aquilo que os governantes inteligentes pensam, mas cuidadosamente ocultam. Diz abertamente que aqueles que servem o exército estão a seu serviço e devem estar prontos, para seu benefício, a matar seus irmãos e seus pais.
(...)
Como um hipnotizador audaz, ele experimenta o grau de insensibilidade do hipnotizado. Aplica-lhe sobre a pele um ferro ardente; a pele fumega, enruga, mas o entorpecido não acorda.
(...)
Dizem-lhe: "Serás meu servo, e esta servidão vai obrigar-te a matar também o teu próprio irmão", e ele, por vezes até muito instruído, entrega tranquilamente seu pescoço aos arreios. Vestem-lhe um traje grotesco, ordenam-lhe que pule, faça gestos, reverencie, mate, e ele tudo faz docilmente. E quando o exoneram, ele retorna, como se nada tivesse acontecido, à antiga vida, e continua a falar da dignidade do homem, da liberdade, da igualdade, da fraternidade!
(...)
Matai-os ao milhares, aos milhões, fazei-os em pedaços, eles seguirão da mesma maneira ao massacre como um rebanho estúpido. Serão obrigados a caminhar, sendo chicoteados por uns e autorizados por outros a usar pedaços de fitas e galões.

E é com uma sociedade assim, composta de homens embrutecidos a ponto de prometerem matar os próprios parentes, que certos homens públicos - conservadores, liberais, socialistas, anarquistas - desejariam construir uma sociedade racional e moral. Assim como não é possível construir uma casa com traves contorcidas e podres, com homens dessa espécie não é possível organizar uma sociedade moral e racional. 


Liev Tosltói - O reino de Deus está em vós

1 comentários:

  1. Sabemos que esses homens podem estar nos norteando, porém, também observamos que as "traves podres" só servirão para serem consumidas pelo fogo...

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