Me pergunto se já houve na história sociedade com tão pouco interesse pelo sagrado quanto a nossa; tão pouco preocupada com a vida do espírito, com tanto desprezo pelo imensurável, tão pronta a desprezar os que sentem que essas coisas são essenciais à vida humana. (Paul Kingsnorth, em In The Black Chamber)
A grande contribuição das tradições religiosas não está nas instituições que geram ou nas suas teologias. Seu valor está consumado nas suas narrativas: na medida de humanidade das histórias que contam. O homem comum, se tiver sorte, nunca vai ter de entender os meandros da teologia à qual está afiliada a sua fé. Porém o mais despretensioso dos homens pode ter, e frequentemente tem, a vida desarmada pelo caráter humano de uma grande história. A teologia quer nos ensinar a ser gente admirável; uma história pode nos ensinar a quem admirar – e não há herança mais delicada e mais rara.
É o que ganharam as gerações que pausaram diante da história de Sidarta, da família Gautama, que nasceu no atual Nepal coisa de 500 anos antes de Jesus. Sidarta Gautama, diz a história, era um príncipe. Seu pai, querendo prepará-lo para ser um grande monarca, manteve desde o nascimento o filho recluso no palácio, vivendo regaladamente e longe de tudo que pudesse despertar nele a consciência do aspecto trágico da vida.
O príncipe viveu vinte e nove anos desse modo, sem testemunhar sofrimento, enfermidade ou morte, entre gente paga pelo pai para viver como se os recursos da vida fossem inesgotáveis. O que salvou Sidarta dessa existência entorpecente foi uma escapada de carruagem para fora do palácio. No caminho o príncipe encontrou um homem velho. “Todos as criaturas envelhecem”, explicou seu cocheiro, diante da perplexidade do príncipe. Encontraram um homem sofrendo de uma enfermidade. “Todas as criaturas estão sujeitas à doença e à dor”, explicou o cocheiro. Encontraram um corpo em decomposição. “A morte sobrevêm a todos”, explicou o cocheiro.
Encontraram por fim um asceta, e nessa figura o príncipe encontrou quem admirar. Com a ajuda do cocheiro, Sidarta escapou do palácio enquanto os guardas dormiam e passou a viver como asceta mendicante. Submeteu-se com seus seguidores a privações cada vez maiores, até desmaiar de exaustão enquanto se banhava no rio e entender que o ascetismo extremo não era a resposta para o dilema do sofrimento. Ele intuiu que não era sábio recorrer aos extremos: sem forças e faminto, aceitou o arroz-com-leite que veio lhe oferecer uma jovem. Então, com 35 anos, sentado sob uma figueira, Sidarta alcançou a iluminação: era o Buda.
A saída que o Buda entreviu para o beco sem saída das mazelas da vida é o nirvana/o assoprar da vela: um estado de plena iluminação e de plena suficiência, uma imobilidade deliberada que torna seu sujeito finalmente livre das armadilhas do desejo e do temor, bem como de suas consequências. Para o Buda, o sofrimento é causado pela ânsia de possuir, a gana de ser e de permanecer. Para deixar de sofrer o homem deve desapegar-se de todo de todas as coisas. Quem não tem a ilusão de ser e de permanecer não tem mais por onde sofrer.
Esta inepta recapitulação bastará para apontar porque a alma de gerações de homens e mulheres foi destelhada por essa história. A humanidade essencial da trajetória do Buda plantou as sementes da gentileza e da tolerância em culturas inteiras.
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Para o inquieto coração ocidental, o desfecho do nirvana parece particularmente indesejável. Se para deixar de sofrer é preciso deixar de desejar, para nós o próprio sofrimento passa a parecer destino mais nobre e admirável. Queremos ansiar formidavelmente pelas coisas, ainda quando entendemos que a descompensação será perene e nos causará constante insatisfação. Celebramos na verdade a insatisfação como motor de todo progresso.
Rejeitar a solução do Buda é uma coisa, mas não nos limitamos a não ver o mundo como ele via. Nosso desprezo pelo que as tradições da humanidade tomaram por sagrado é mais sofisticado e mais completo – e isso fica claro quando comparamos as nossas narrativas. A sociedade de consumo exige que a nossa história individual seja um rigoroso reverso da história de Sidarta.
Na sociedade de consumo somos o Antibuda.
Em sua refinada modalidade contemporânea, o capitalismo é um convite perene para que desejemos, sustentemos e habitemos o palácio de delícias que Sidarta deixou para trás. Tudo – absolutamente tudo – que a publicidade faz é acenar com um mundo ilusório livre de limites e de decadência. Este, explica o capitalismo, é você, e este é o mundo que você quer desejar comprar. Você não precisa contemplar o envelhecimento, nem sequer o seu. Você pode estar conectado 100% do tempo, sem conhecer a inconveniência da separação. Este produto (não, este! Este!Este!) irá finalmente dar a você o senso de satisfação pessoal que você sempre desejou e mereceu. E a morte, para sua conveniência, já foi tirada de cena há décadas. Quem precisa pensar em degolar um frango, quando pode pedir uma porção de chicken nuggets.
Da mesma forma que os habitantes do palácio de Sidarta Gautama, o capitalismo é pago para falar e agir como se todos os recursos fossem inesgotáveis, como se a riqueza e a opulência fossem o modo natural de se experimentar a vida. Vai dar tudo certo, e nossas colaboradoras irão atendê-lo em um minuto. Aceite por favor este cartão de tratamento preferencial, que em circunstâncias difíceis irá poupá-lo das ânsias e constrangimentos que afligem a maioria dos mortais. Só não saia de casa sem ele. Você deve ter lido em algum lugar que este mundo já conheceu morte, dor e sofrimento, mas isso foi antes do nosso Plano MaxClient. Posso lhe falar dos nossos benefícios? Veja como colocamos esse novo modelo de automóvel numa desolada planície siberiana, de modo a lembrá-lo que o tráfego é uma ilusão e este mundo não tem limites. Quem seria estúpido de querer olhar para fora deste palácio, não é verdade? Posso lhe trazer mais um uísque? E não me deixe esquecer: você merece.
Não há quem ouça a história de Sidarta e não entenda que há algo de assombroso, algo de puramente grandioso e admirável, em sua decisão de abandonar uma vida de artificialidades e mergulhar na realidade como ela é. E ainda assim permanecemos cegos para o fato de que cotidianamente o que encarnamos é o Antibuda. Sidarta recusou uma vida privilegiada porque não queria viver uma ilusão; a vida de ilusão que ele deixou para trás é tudo pelo que lutamos.
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Admirar é estabelecer um alvo, é delinear uma cultura. Você admira Bill Gates e Steve Jobs. Gerações de budistas veneraram um cara que apostava que todas as conquistas humanas são ilusórias, que o que chamamos de seguranças nada produzem além ansiedade e sofrimento, que o único território que vale à pena conquistar é o do coração.
Outras gerações de homens admiraram São Francisco, ou Gandhi, que criam em coisa semelhante e viveram de modo muito parecido. Ou Jesus, porque não é preciso fingir que essas narrativas essenciais difiram em muito. O Antibuda é também o Anticristo.
Como Sidarta Gautama, o rabi de Nazaré ensinou que a sede pela riqueza e pelo poder desfiguram, desvirtuam e traem a humanidade de todos que se deixam embriagar por ela. A riqueza promete satisfação, mas gera um ciclo vicioso de insatisfação; promete autonomia e segurança, mas gera dependência e fomenta o engano; promete que seremos admirados e reconhecidos, mas nos confina ao isolamento; promete grandeza, mas nos reduz a marionetes, a meros simulacros de gente.
Como o Buda, Jesus viveu de modo inteiramente consistente com esse ensino. Suas histórias, suas palestras, suas frases de efeito e suas investidas articulam a mesma mensagem que o seu modo de vida: se você quer ser meu seguidor, meu amigo, saiba que não tenho onde cair morto – e você deveria estar me admirando é por isso.
Ou: quem não abre mão de tudo que possui não tem cacife para ser meu seguidor.
Ou: não sejam idiotas de acumular riquezas num mundo em que tudo se perde. Tudo que não é eterno se perde, meu caro. Olhe ao redor, essa civilização e esses monumentos. Quanto tempo perdido! Vai tudo abaixo e você nesse meio tempo sonegando tempo para o que na vida realmente conta. Venda tudo o que possui e dê aos pobres, e vamos ali comer um peixe que Simão acabou de pescar. O cara pensa que está coberto porque tem reservas em celeiros, mas morre amanhã e pra quem fica? O amor, a amizade: isso é eterno, sujeito. Não existe amor maior do que dar a vida pelos que você ama. Ame muito, e vai ter muita vida pra dar. Eu vim para que vocês tenham vida, e vida em abundância. O que eu peço ao meu Pai, e vocês são testemunhas, é que que quem quiser me seguir viva como eu vivi.
Ou: olhe para essas flores do campo. Só olhe pra elas.
Desapegue-se, velho, foi a porção da mensagem de Jesus que as primeiras gerações de seus seguidores tomaram por essencial. Os convertidos do Pentecostes despiram-se da cadeia das coisas para tornarem-se livres para viver em comum, e os apóstolos alertaram continuamente para a ilusão da riqueza. Não ignoravam que, como Sidarta, Jesus tinha feito o trajeto voluntário para longe das riquezas em direção ao abraço amoroso do mundo: Vocês conhecem o caráter do nosso Jesus – que, sendo rico, por amor de vocês se fez pobre, para que pela sua pobreza vocês fossem enriquecidos (2 Coríntios 8:9). E não ignoravam que nada podia haver de mais paradoxal do que um seguidor de Jesus admirando um rico ou concedendo a um poderoso tratamento preferencial:
Que ideia é essa de dar ao rico lugar de honra e ao pobre um banquinho no canto? Quem lhes ensinou esse critério perverso de seleção? Não foi os pobres do mundo que Deus escolheu para fazer ricos na fé e herdeiros do reino que prometeu aos que o amam? E vocês desonram o pobre! Não são os ricos que oprimem vocês e os arrastam aos tribunais? (Tiago 2:3-6)
A posição oficial do Novo Testamento é de que o que um rico merece é comiseração, e de alguém que lhe abra os olhos para a verdade da sua condição:
Eis agora, vocês que são ricos, lamentem e chorem, por causa das desgraças que lhes sobrevirão. As suas riquezas estão apodrecidas, e as roupas de vocês roídas pela traça. O seu ouro e sua prata estão enferrujados, e a ferrugem deles prestará testemunho contra vocês, e devorará as suas carnes como fogo. Vocês ajuntaram economias, mas em vão: esses são os últimos dias. O salário que vocês fraudulentamente sonegaram dos seus empregados está clamando, e o clamor dos trabalhadores têm chegado aos ouvidos do Senhor dos exércitos. Vocês viveram regaladamente sobre a terra, e se refestelaram. Vocês engordaram o coração de vocês, muito bem; pena que justo hoje é dia de matar os animais gordos para o consumo. (Tiago 5:1-6)
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Tanto budistas quanto cristãos trataram de minimizar o impacto da mensagem e da vida dos seus mestres através de comentários e teologias, isto é, reposicionamentos ideológicos. O budismo contemporâneo se divide em duas grandes correntes, Theravada e Mahayana, que divergem entre si, em ênfases e práticas, pelo menos tanto quanto as igrejas católica e protestante. Ou seja, um tanto razoável.
Porém não é difícil argumentar que os cristãos anularam o impacto da vida e da mensagem de Jesus de modo mais eficaz do que os budistas jamais fizeram com o Buda. Como já devo ter dito em mais de um lugar, os cristãos usaram o próprio conceito da divindade de Jesus como pretexto para tornar sem efeito qualquer relevância que o seu modo de vida e suas palavras tivessem para os dilemas deste mundo. Assine aqui e estará aceitando Jesus como Salvador pessoal, sinta-se muito à vontade para ignorar o que ele faz e diz nessas quatro biografias. Na nossa loja virtual você encontra por 900 reais a Bíblia da Vitória Financeira.
Felizmente, as histórias têm um brilho que nem mesmo a fuligem da máquina teológica consegue apagar. No ocidente, a despeito das barbaridades interpretativas, litúrgicas e operacionais da igreja formal, as gerações continuaram a desarmar-se diante da ternura essencial do Jesus da narrativa que está nos evangelhos. Encontrando em Jesus quem admirar, escolheram tornar-se gente admirável pessoas como São Francisco, Tolstoi, Gandhi, Madre Teresa e Martin Luther King.
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Nosso mundo encontra-se numa grande encruzilhada entre narrativas competidoras.
De um lado, as narrativas do sagrado insistem que devemos admirar gente como Buda e como Jesus, e nos dizem: desapegue-se, meu caro. Deixe de correr atrás do vento. Deixe de derramar ansiedade sobre si mesmo e sobre os outros. Não seja idiota de ajuntar riquezas inconstantes onde tudo se perde. Conquiste o seu coração. Respeite o próximo e o ambiente. Ame. Reduza, e será grande. Recolha-se, e estará no centro. Sirva, e será maior do que todos. Recue, e verá a paisagem que todos perdem. Seja gentil. A notícia da graça é a gratuidade de todas as coisas. Rico é quem não precisa de nada.
Do outro lado, as narrativas da sociedade de consumo querem que admiremos os grandes e bem-sucedidos, e nos dizem: tome posse, meu caro. Corra atrás de resultados. Crise é oportunidade, canalize em produtividade essa insatisfação. Acumule, e será finalmente livre para desfrutar. Conquiste o mundo, e seu coração encontrará a paz. Faça alianças sinergéticas e aposte todas as suas fichas. Consuma. Pense grande, e será grande. Cada palmo que você pisar será seu. Seja servido, e sua grandeza será evidente. Um dia tudo isso será seu. Seja implacável. Todo aquele que invocar o nome da performance será salvo. Rico é quem tem tudo.
Diga-me quem você admira, e saberei quanto você é admirável.
Paulo Brabo, em O Antibuda.
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